Sobre as aproximações entre a ciência e o ato de avaliar
- SABELETRAS

- 3 de dez. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 20 de dez. de 2024

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É bastante incomum que professores pensem em suas avaliações como uma atividade científica. Não importa se os professores estão trabalhando com provas, portfólios, projetos, avaliação por pares ou autoavaliação, a avaliação está longe de ser considerada uma atividade científica, até porque os professores - com exceção de alguns casos no contexto universitário - não assumem uma identidade de cientistas. As demandas da rotina docente também não privilegiam pensar a avaliação como ciência
Nesse texto, não quero defender a ideia de que as avaliações de sala de aula são uma atividade científica. Mas quero, sim, argumentar em favor de algumas semelhanças entre essas atividades. Qual seria, porém, a vantagem de pensar nesses termos? A resposta tem a ver com a visão que temos da ciência no mundo contemporâneo: uma fonte confiável de conhecimentos. Portanto, ao refletirmos sobre a avaliação a partir de um olhar da ciência, contribuímos para avaliações mais confiáveis.
Também é preciso ressaltar que a ciência é uma atividade humana complexa, diversa e ampla. Muitas são as áreas e disciplinas científicas, assim como seus métodos e teorias. Assim, a proposta nesse texto não é discutir detalhes dos métodos empregados pelas ciências, mas algumas características encontradas nas diversas ciências. Então, quais seriam essas características e quais são suas semelhanças com a atividade de avaliar? Vamos analisar três aspectos em que se pode observar aproximações entre a atividade científica e o ato de avaliar.
Em busca do inobservável
A ciência pode ser entendida como uma eterna busca para compreender o inobservável. O que isso significa? A realidade é composta de elementos observáveis e inobserváveis. Os fenômenos ou fatos naturais, sociais, culturais, históricos, cognitivos, psicológicos, linguísticos, dentre outros, apresentam elementos percebidos prontamente, e outros que não são conhecidos e nem percebidos de forma imediata. Como observadores da realidade à nossa volta não demoramos em nos perguntar o que está atrás daqueles fatos ou fenômenos percebidos, isto é, nos perguntamos se não existem outros elementos não observados que possam explicar o que percebemos. Ao longo da história, as diversas áreas do conhecimento propuseram conceitos ou descobriram certos fatos não observáveis que ajudaram a explicar a realidade. A descoberta dos vírus, por exemplo, como um fator explicativo para as doenças é um bom exemplo. A possibilidade de observar os vírus era inexistente por séculos, até que o desenvolvimento do microscópio tornou algo inobservável em algo observável. Já o magnetismo permanece inobservável em si, embora certos instrumentos permitam visualizar seus campos de força e medi-los. Algumas fenômenos da natureza, por outro lado, não podem ser observados, mas meramente supostos pela teoria científica (mais a respeito a seguir).
O ato de avaliar também funciona com base em elementos observáveis e não observáveis. O professor busca em dados observáveis a evidência da aprendizagem, que não pode ser observada de forma direta. Se um estudante é capaz de fazer um cálculo matemático, escrever um texto ou aplicar um conceito, o professor supõe à base dessa evidência que uma habilidade foi adquirida. Se fôssemos capazes de entrar em suas mentes e saber se nossos estudantes desenvolveram uma habilidade ou corpo de conhecimentos não nos ocuparíamos com a construção e o uso de instrumentos de avaliação. Nesse sentido, avaliar significa criar condições para que evidências de uma habilidade ou conhecimento possam se manifestar. Se as evidências surgem, supomos a existência da aprendizagem, ao passo que a inexistência da evidência sugere a inexistência da aprendizagem. Em geral, porém, a evidência se manifesta em diferentes graus, sugerindo diferentes níveis de aprendizagem.
Teoria - o olhar sobre a realidade
Todas as disciplinas científicas fazem uso de teorias. São as teorias que nos permitem explicar os fenômenos e gerar conhecimento. As teorias integram conceitos, suposições sobre o funcionamento dos fenômenos e evidência para construir uma explicação plausível e que possa ser testada. As teorias dão coerência as informações que os pesquisadores possuem.
As atividades de avaliação também se baseiam tem teorias, quer se tenha consciência disso ou não. Admita-se ou não todo professor possui um conjunto de ideias sobre avaliação, aprendizagem, conhecimento e sobre os estudantes. Pode até ser que algumas dessas ideias não sejam tão coerentes, mas elas estão lá sustentando as explicações que o professor elabora sobre o desempenho dos estudantes.
Por exemplo, os professores em geral acreditam que o comportamento de um estudante em uma atividade, prova, projeto ou portfólio revela sua aprendizagem, seu progresso, seu processo de resolução de problemas. Os professores podem ter crenças sobre quanta evidência é necessária para que se evidencie a aprendizagem. É comum professores e alunos, por exemplo, questionarem a capacidade das provas de demonstrar se os estudantes aprenderam ou não. Para essas pessoas, a aprendizagem deve ser demonstrada por meio de diversos instrumentos. Mas quantos instrumentos são necessários para se evidenciar a aprendizagem? Quantas avaliações são necessárias para tal evidência? É verdade que os professores com frequência sofrem as pressões do calendário e de sua rotina, mas eles e elas em geral acreditam que tomaram decisões corretas e sustentam essa posição nos resultados de suas avaliações. Tudo isso constitui um conjunto de explicações, ou uma forma de teoria docente sobre o processo de aprendizagem. Essa teoria pode resultar das crenças, da prática, da observação e até mesmo da formação docente, o que inclui o acesso a teorias acadêmicas de aprendizagem, ensino, avaliação e cognição. Também não é incomum que as explicações docentes resultem um pouco de cada uma dessas coisas.
Dados - a dimensão empírica
A ciência trabalha com dados, ou seja, com evidências empíricas (da experiência concreta) para chegar às suas conclusões. Em algumas áreas do conhecimento, esses dados são produzidos de forma controlada, dentro de laboratórios, com todo o cuidado para que as informações colhidas não tenham interferências de outras informações. Por exemplo, um biólogo que esteja pesquisando um microorganismo precisa ter certeza que seus instrumentos de pesquisa não tenham contaminação de outros microorganismos ou de substâncias que possam interferir em seus resultados. Já um arqueólogo deverá coletar dados da realidade, muitas vezes identificando artefatos (objetos) em seu contexto original. O registro do local e das condições em que o artefato foi encontrado é fundamental para as explicações de serão elaboradas. Assim, enquanto o biólogo deverá trabalhar em condições controladas, dentro de um laboratório, o arqueólogo buscará interpretar e registrar a situação natural em que a evidência foi encontrada, considerando inclusive todas as interferências que ajudem a dar significado aquela evidência (Importante: não se pretende dizer com isso que toda pesquisa em biologia e arqueologia sigam esse padrão. Esses são meros exemplos ilustrativos).
Na avaliação, os professores também trabalham com dados, ou evidências que permitam compreender algo sobre a aprendizagem dos estudantes. Pode ser que os professores utilizem instrumentos mais controlados para fazer sua avaliação, tais como provas com perguntas objetivas e rubricas padronizadas. Pode ser também que os professores prefiram dados que ocorram de forma mais natural, como em um projeto, portfólio ou em tarefas nos quais o estudante produz diversas evidências de como procurou alcançar um objetivo. Um conjunto de redações sobre um tema, relatórios de uma pesquisa, elaboração de uma maquete etc. são todos exemplos de produções dos estudantes elaboradas de forma menos controlada do que às respostas a perguntas de múltipla escolha de uma prova. Em geral, as atividades de ensino e avaliação transitam entre extremos de mais ou menos controle, raramente sendo totalmente livres e totalmente controladas (por exemplo, embora seja uma atividade livre a elaboração de uma redação pode seguir orientações do professor, ao passo que uma prova ministrada em sala de aula, mesmo sendo uma atividade mais controlada, está longe de atingir o nível de padronização e controle de testes padronizados de larga escala, como o Enem).
Algumas lições adicionas
Esses são apenas três exemplos de aproximações entre a atividade científica e o ato de avaliar. Evidentemente, não estamos dizendo que quando um professor está avaliando seus estudante, ele ou ela está fazendo ciência. Mas há algumas lições que podemos tirar dessa comparação para melhorar a nossa atuação como professores avaliadores. Quais são elas?
Em primeiro lugar, precisamos compreender que a avaliação é uma busca por algo que não observamos de forma direta. Essa constatação deveria nos levar a sempre nos perguntar se estamos no caminho certo, ou seja, se tiramos conclusões corretas com base nos resultados de uma prova, atividade ou portfólio, por exemplo. Devemos manter uma desconfiança saudável de nossas próprias conclusões e buscar caminhos para aumentar o nosso nível de confiança. Será que uma única prova é suficiente para tirarmos conclusões sobre os estudantes? Será que a aplicação de diversas atividades resulta em um nível de confiança melhor? Importa a maneira que aplicamos essas atividades ou como as avaliamos? Será que nossos instrumentos de avaliação funcionam de verdade para o que pretendemos?
Um segundo aspecto diz respeito às explicações que buscamos, ou seja às nossa elaborações teóricas. Nossas explicações para o comportamento dos estudantes são coerentes? São fundamentadas no que se sabe cientificamente sobre a aprendizagem e sobre nosso campo de atuação? Até que ponto nossas explicações têm base nos dados que nós mesmos colhemos com nossos instrumentos de avaliação? O que me leva, por exemplo, a concluir que um aluno se desempenhou bem em uma avaliação: os dados do instrumento ou uma percepção pré-concebida que temos sobre ele?
Por fim, nossa escolha do instrumento poderá produzir diferentes tipos de dados e interpretações, resultados de procedimentos mais ou menos controlados. Para evitar vieses e deixar claro os critérios, muitos professores utilizam rubricas de avaliação, mesmo em atividade menos controladas. Afinal, enquanto uma prova com perguntas objetivas permite a elaboração antecipada de um gabarito, como um professor deverá avaliar um conjunto de redações ou relatórios por exemplo? Será que ele ou ela vai aplicar critérios justos e claros? O professor está consciente desses critérios? Os estudantes conhecem esses critérios e já os experimentaram em diversas atividades de aprendizagem? (muitos professores compartilham suas rubricas com os estudantes previamente, pois isso poderá ajudá-los em sua aprendizagem). A escolha do instrumento e do grau de controle precisa estar alinhada com os objetivos de aprendizagem e com os tipos de tarefas. Por exemplo, uma prova com perguntas objetivas sobre gramática e vocabulário é de pouca utilidade para mostrar se os estudantes sabem escrever bem, pois outros fatores além desses compõem a habilidade de escrita. Mas se um professor desejar saber se seus alunos assimilaram um conjunto de regras gramaticais, a opção por produções de texto vai trazer resultados frustrantes. Então, o objetivo e a natureza do que se deseja produzir são muito relevantes no processo de avaliação já que produzem dados diferentes.
Pensar nas semelhanças entre a atividade científica e o ato de avaliar poderá, assim, qualificar o nosso trabalho nos tornando mais conscientes sobre as potencialidades e as fragilidades da avaliação. Poderá ser também o início de uma jornada para adotarmos um olhar mais científico, mais fundamentado e criterioso em nossa prática docente e avaliativa.


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